Tamina acordou sobressaltada. Um arrepio percorreu-a e ela, instintivamente, construiu com os seus longos dedos um símbolo de banimento, no ar. Depois ficou quieta, escutando o vazio, olhando com olhos muito abertos as trevas à sua frente. Nada se movia, no seu mundo. E, quase instantaneamente, Tamina soube qual era o perigo: num mundo inferior um demónio tinha obtido a energia de uma luminescente. Viria com a próxima lua negra. A feiticeira arrepiou-se. Dentro de si ainda guardava uma vaga memória da sua existência como luminescente. As memórias dispersaram a mente de Tamina, mas a constatação de que a lua negra seria já na próxima noite, varreu completamente todos os outros pensamentos. A feiticeira saltou da cama e depois ficou parada, sem saber o que fazer.
Entoou baixinho uma longa litania, numa língua que quase lhe arranhava a garganta. Quando o responso para afastar o medo terminou, ela sentiu-se francamente mais calma. Pensou por instantes e resolveu deitar-se mais um bocadinho. A noite estava ainda a meio, a escuridão nada lhe permitiria fazer, tinha que esperar até que a madrugada chegasse.
A feiticeira voltou para a cama, meteu-se debaixo das mantas e, de imediato, sentiu o deslizar sedoso de Anantis na sua perna esquerda. A serpente enrolou-se sobre a barriga de Tamina, que ficou quieta, forçando-se a respirar pausadamente para sossegar a jovem víbora. Tamina fechou os olhos e, pouco depois, entrou em transe.
Ela olha-o. No mundo dele a tarde está quase no fim. Ele está sentado numa sala vazia, no meio de uma imensidão de mesas rectangulares. Está à espera. Dentro e fora dele só há silêncio. Ela aproxima-se e toca-lhe carinhosamente nos cabelos curtos e negros, ele levanta os olhos mas não a vê. Ela sorri. O carinho transparece nos olhos dela. Com uma voz doce, ela fala-lhe, ao mesmo tempo que cria um símbolo no ar. Volta a tocar-lhe, desta vez nas pálpebras. Ele fecha os olhos, suavemente deixa cair a cabeça sobre os braços cruzados e adormece. Ela começa a cantar, com uma voz profunda, um cântico composto por estranhas palavras, que no sonho dele o acordam. Ele olha-a e ela percebe que, desta vez, ele já a vê. Ambos sorriem. Os olhos dele brilham intensamente. Ela ri, rodopia e tece mais um encantamento. Eles deixam, de imediato, de estar na sala, encontrando-se algures no meio do vazio. Estão próximos, abraçam-se e nada dizem. Luzes vagueiam à volta deles. Luzes vivas. O silêncio impõe-se por um momento. Um silêncio estranho, pesado, que os deixa entorpecidos, como se os corpos deles estivessem quase esquecidos, fazendo parte de outra realidade. E é assim durante muito tempo, até que um coro celestial começa a ouvir-se. Longe, ainda muito longe deles. Outras vozes se juntam ao coro. Muitas, muitas vozes. Eles abraçam-se ainda mais e o silêncio regressa, por instantes, mas apenas para permitir que a música expluda novamente à volta deles. Uma música majestosa e rápida, que os leva a sentirem-se rodopiar a um ritmo alucinante. Até que por fim, a espiral que os corpos deles iam construindo termina e eles vêem-se num lugar distante, no meio das estrelas. Os corpos deles tornaram-se quase translúcidos e ambos têm um fio cor de prata a ligá-los a qualquer coisa, algures.
Nesse instante ela diz mais uma palavra e eles surgem bem no topo de uma montanha muito alta. Ele vê, por entre farrapos de neblina branca, os cumes de outros montes. O horizonte não tem fim. O mundo está à volta deles. E eles são um só.
Acodem à mente dele pensamentos estranhos. Ele começa a escutá-los:
"Lembro-me de ti quando tu ainda eras um corpo minúsculo que circulava na lama quente. Passaram-se milhares de anos para mim, mas tu tiveste sempre o estranho dom do esquecimento... Estivemos juntos, quando no céu de tempestade havia cores fortes. Era o princípio. O primeiro princípio. Não sei se havia som, mas ainda lembro a intensidade do calor. O mundo tinha nome e tu eras nada. Lembro-me da tua luta e, já nessa altura, o mundo respondia com um muro de silêncio ao teu desespero. Mas tu continuaste lá, em movimentos eternos, no lodo espesso. Depois houve sucessões quase infinitas de princípios. Lembro aquele que ainda é o teu último princípio: o teu corpo pequenino circulava na lama quente, desta vez dentro de um universo bem mais pequeno que o mundo de outrora. Foi o teu último refúgio, donde também te expulsaram. E, agora, outro princípio surgirá para ti: dentro do teu corpo, o teu espírito aprisionado girará como uma espiral, na luz branca e quente. A cor baça do fim. Talvez o último dos fins e o último dos princípios. A tua carne ainda é uma prisão de células compactas, mas não será para sempre. Mas eu serei sempre contigo. Daqui a escassos instantes ou milhares de anos, lembrar-te-ei tudo o que houver para lembrar. Daqui a escassos instantes ou milhares de anos, seremos espírito livre que é um com o universo."
Ele sente o seu corpo a ser atravessado por ventos vindos dos quatro cantos do mundo. O vento grita continuamente e ele tem medo. Sobrepondo-se aos gritos do vento, ele escuta o riso suave dela, um riso de criança, mas nem assim ele deixa de ter medo.
A língua bífida de Anantis passa suavemente no queixo da feiticeira, várias vezes. Tamina recupera a consciência. Lágrimas caem dos seus olhos, mas ela sorri. Sabe que está perto, muito perto. Hoje ele quase se lembrou. Se ele não tivesse tido medo... vários pensamentos se atropelam na mente dela. A feiticeira lembra-se do confronto iminente com o demónio. Pensa que se o demónio a matar, tudo se perderá. Tamina estremece violentamente e assusta Anantis, que a morde no pescoço.
terça-feira, janeiro 24, 2006
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1 comentário:
continuo a espera de novas coisas para ler...
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