sexta-feira, outubro 10, 2008

Noite Noitíssima

No silêncio da noite, ele gritou um nome estranho:
- Tamina! Tamina! Tamina!...
Gritou em desespero, sem saber porque gritava ou que nome era aquele que ele não conseguia parar de gritar. Gritou até não ter mais voz. E quando os gritos dele acabaram, fitou a noite escura com olhos que nada viam, completamente perdido. Começou, então, a ouvir um estranho barulho que o deixou aterrorizado, vindo das profundezas da noite.

Ele sabe que devia conhecer aquele barulho. Quer lembrar-se, naquele preciso instante. Acha que se se lembrar não terá medo. Quer saber. Ele sente que precisa lembrar-se. Não quer o barulho que continua sempre e que ele não reconhece, que o assusta.

Interroga-se se estará acordado. É noite. Sim, se não fosse noite a mulher magra e vestida de preto viria acordá-lo. Chamá-lo-ia com aquela voz fina que faz arrepios. E seria dia.
Ele quer que a mulher de preto venha acordá-lo, se ele estiver a dormir. Quer que a mulher de preto o chame, naquele preciso instante. Não quer ter medo. Quer que seja dia.

Mas a mulher não vinha. Era ainda noite. E o barulho continuava. Parava durante instantes, para depois se voltar a ouvir ainda mais forte. E quando o barulho parava ele não deixava de ter medo, tinha medo de tudo o que escutava e que não era o barulho, pois este tinha parado.
Quando o barulho parava ele sabia que ele voltaria. E sustinha a respiração, cheio de medo, à espera de ouvi-lo novamente. E, novamente, ele ouvia o barulho. O barulho que o fazia ter medo e que ele não reconhecia.
Quando o barulho voltava ele não sabia se deveria sentir alívio, ou ainda mais medo. Ele queria que tudo acabasse e dormir se estivesse acordado, ou acordar se estivesse a dormir.

Deixou-se estar quieto, quase sem respirar. Com os olhos muito abertos, ele olhava as trevas. Sentia ódio da mulher magra, sempre vestida de preto. Odiava-a porque não vinha dizer-lhe para se levantar, que já era dia. Assim, ainda era noite. E seria sempre noite. E ele teria medo sempre. Sempre. Sempre. Se ele pudesse pedir-lhe para vir. Esperava, deixando-se estar quieto, olhando a escuridão à volta e dentro dele com os olhos muito abertos.

O barulho parava durante instantes, para depois se voltar a ouvir ainda mais forte. E novamente o barulho parava, para voltar outra vez. E ele sustinha a respiração até voltar a ouvi-lo, sempre cheio de medo.

Na noite e dentro dele qualquer coisa se alterou, mas ele não sabia o que era. Escutou com toda a força que tinha. E não quis pensar, para não ter ainda mais medo. Por fim descobriu que havia outro ruído no meio do barulho que parava durante instantes, para depois se voltar a ouvir ainda mais forte. Ou talvez o ruído sempre lá tivesse estado e ele só agora o ouvisse.
Era quase um lamento, muito triste. Mas ele gostava de o ouvir. Queria mesmo não ouvir mais nada. E o lamento continuava, cada vez mais triste. A ele parecia-lhe que tudo iria acabar, nada poderia resistir a tão grande tristeza. Concentrou-se nesse som triste de que gostava, até não ouvir mais nada. Até ele ser o lamento e dentro dele não haver mais nada, nem sequer medo.

Afastou os cobertores e levantou-se. Pouco depois caminhava na escuridão. Ele seguia o caminho que devia seguir, mas ainda que quisesse já não saberia pensar. Nem ser.

De repente, tudo acabou. Ele deixou de ouvir o som triste de que gostava e que não lhe deixava ouvir, ver ou sentir mais nada. Não lhe deixava ter medo. E, instantaneamente, o corpo dele imobilizou-se. O medo voltou.
Ele não sabia onde estava. Achava que já não estava no quarto. Não sabia. Já nem sequer sabia se alguma vez tinha estado no quarto, se havia quarto. Não sabia se estava a dormir ou se estava acordado. Talvez não existissem dormir e acordar. Talvez ele não existisse. Ele não sabia, mas tinha medo.

As gotas de água gelada espalhavam-se pela cara, pelo cabelo, por todo o corpo dele. Ele deixou-se cair de joelhos, sentindo nas pernas e nas mãos a familiaridade da terra molhada. Ouvia outra vez o barulho aterrorizador, que parava durante escassos instantes, para depois se voltar a ouvir ainda mais forte. E a escuridão à frente dele era marcada por riscos de luz, que iam e vinham.

E ele gritou, na noite. Gritou um nome que não reconhecia.
- Tamina! Tamina! Tamina!...
Os olhos dele estavam fechados, com as mãos tapava os ouvidos. E ele continuou a gritar. Mas não sabia porque gritava, nem sequer sabia que gritava. E com as suas mãos ele tapava os seus ouvidos. Mas não saberia dizer se eram as suas mãos ou os seus ouvidos. Ele gritava e não sabia nada, mas tinha medo.

E ele teve sempre medo, mesmo quando o corpo dele se misturou com a terra e ele passou a fazer parte da noite e da tempestade; mesmo quando o corpo dele continuou a rolar na terra molhada, vezes sem conta.

Por fim, as mãos dele encontraram algo macio e as suas voltas acabaram. Ele ouviu, outra vez, o som triste de que gostava. Novamente, ele era o lamento e só o lamento. E ele já não tinha medo.

As gotas de chuva misturavam-se com o sal das lágrimas dele. As suas mãos acariciavam o animal moribundo. E suavemente, quase com doçura, ele começou a lamber o sangue que escorria do focinho do lobo.